De outra, também se pode antever o alcance do princípio da boa-fé objetiva, diante da crença do servidor na legalidade das parcelas remuneratórias que percebe, ante o princípio da presunção de legitimidade dos atos da Administração Pública.
O tema posto a exame evoca, já num primeiro instante, um sério conflito de aplicabilidade dos princípios da legalidade e da confiança, este também conhecido como principio da boa-fé objetiva.
Prima facie, ambos os postulados jurídico-constitucionais (o primeiro de caráter explícito e o segundo de índole implícita no sistema) são aplicáveis em casos de pagamento indevido de remuneração a servidor público.
De uma banda, parece juridicamente válido recobrar o que foi pago a servidor além do permitido na lei que estipula sua remuneração. De outra, também se pode antever o alcance do princípio da boa-fé objetiva, diante da crença do servidor na legalidade das parcelas remuneratórias que percebe, ante o princípio da presunção de legitimidade dos atos da Administração Pública.
Tendo esses mandamentos, nos moldes acima, um potencial de eficácia em realidades fáticas como a versada, e possuindo ambos envergadura constitucional (art. 37, caput, da Constituição, e outros de que se deduz a boa-fé), a polêmica há que se resolver com base na técnica da ponderação de valores, incorporada, de forma inconteste, no arcabouço hermenêutico do Direito Brasileiro.
Autor de obra referencial sobre o tema no Direito Constitucional contemporâneo, o jurista Daniel Sarmento põe em relevo a situação em que se demanda, validamente, a utilização da técnica comentada:
Como a técnica da ponderação tem sempre em vista um caso concreto, calha levantar um exemplo fático de molde a realçar a possibilidade de opção, por ter maior peso ou preponderância, do princípio da confiança.
Imagine-se caso de servidor de uma das Casas do Congresso Nacional que é requisitado para o exercício de função comissionada na Presidência da República. No curso do processo administrativo, o órgão de pagamento da Casa Congressual nada disse a respeito de uma redução de uma parcela remuneratória que compõe sua remuneração, em função de uma legislação interna da Casa, decorrente de cessão para outro Poder. Deferida a requisição, a própria Administração deixa de efetuar a redução e continua pagando a remuneração sem a referida redução remuneratória. Passados dois anos, é descoberta, pelo órgão de pessoal da Casa Legislativa, a ilegalidade do pagamento, o que leva à cobrança do que foi pago, indevidamente, durante dois anos de exercício da função na Presidência da República.
A nosso aviso, há que prevalecer, na situação narrada, o princípio da confiança e da boa-fé objetiva, pelos motivos que se põem a informar.
É indubitável, hodiernamente, que o princípio da boa-fé ou da confiança restou adotado em nosso ordenamento jurídico-constitucional.
Em que pese não ser referido de forma manifesta na Carga Magna, ele é deduzido do conjunto de valores hauridos do sistema constitucional,
entre eles o da dignidade humana (art. 1º, III), da solidariedade social (art. 3º, I), da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI) e da moralidade administrativa (art. 37, caput).
Cingindo-se, como é curial, a um dos princípios que mais interessa à atividade administrativa, o princípio da moralidade, é mais do que remansoso na doutrina que o princípio da boa-fé objetiva se apresenta como a noção objetiva desse basilar postulado administrativo.
Nessa senda de pensamento, tem-se o ensinamento do jurista José Guilherme Giacomuzzi, constante de sua obra específica acerca do assunto, sobre as duas dimensões do princípio da moralidade, em que já antecipa, o significado da boa-fé objetiva com o de um padrão de conduta transparente e leal:
Ainda, Carmem Lúcia Antunes Rocha, ao comentar o princípio da moralidade administrativa, segue a mesma trilha do retrocitado autor: "A virtude que se pretende ver obtida com a prática administrativa moral fundamenta-se no valor da honestidade do comportamento, da boa-fé, da lealdade dos agentes públicos, e todos estes elementos estão na moralidade, como integrantes de sua essência e sem os quais não se há dela cogitar" (Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 193).
Esclarecida a base constitucional da boa-fé objetiva e da confiança, mister que se traga a lume seu significado jurídico e as funções que exercem no ordenamento, apontando, desde logo, sua confluência no quadro fático levantado como exemplo de conflito entre os princípios da legalidade e confiança.
Elucide-se, em primeiro momento, que a noção de boa-fé objetiva não se confunde, rigorosamente, com a idéia da boa-fé subjetiva, instituto mais familiar aos operadores do Direito Administrativo.
Decerto, enquanto esta se refere a uma postura subjetiva do agente de estar agindo conforme o Direito, aquela preconiza um padrão de conduta leal, transparente e cooperativa das partes envolvidas no tráfego jurídico, sem investigar suas reais intenções. Basta, portanto, uma análise objetiva da situação concreta para verificar se houve ou não quebra do valor boa-fé, sendo de natureza objetiva, também, conforme é pacífico, a responsabilidade pela quebra do princípio da boa-fé objetiva (responsabilidade independente de culpa).
Ao preconizar um agir de acordo com a lealdade, dispensada a investigação psicológica (boa-fé subjetiva), o princípio da boa-fé objetiva exerce três funções no ordenamento jurídico: a primeira, dita interpretativa, concerne ao critério hermenêutico dos contratos e normas jurídicas, que se presta a extrair-lhes o significado de maior conformidade com a boa-fé e a confiança depositada na relação jurídica; a segunda, dita função integrativa, prevê deveres anexos ou laterais aos previstos no contrato ou na lei, que se resumem nos deveres de informação, de lealdade e de proteção. A terceira função, chamada função limitativa, se presta a limitar o exercício dos poderes, direitos e prerrogativas das partes do vínculo jurídico.
Por meio de todas essas três funções, e aqui é preciso bem ressaltar, a boa-fé objetiva há que ter efeito no caso narrado, de modo a se atingir a justiça almejada.
O prisma hermenêutico de maior peso, para o deslinde da situação, será o da confiança e o da boa-fé. De fato, para além das discussões jurídicas e das reais dúvidas que se possam levantar, o que se tem é que a interpretação que vigeu, no exemplo acima, durante o período em que o servidor esteve hipoteticamente cedido, foi a de que a redução não era devida. Isso porque, além de a Administração não ter comunicado ao servidor o mecanismo hermenêutico que iria supostamente trilhar, o que deveria ter feito em função do dever de informação decorrente da boa-fé objetiva, a Administração acabou adotando, independentemente das causas e motivos, o critério da não-redução durante todo o interstício.
Embora tal raciocínio não pareça familiar aos não acostumados com o princípio da boa-fé objetiva, é preciso não olvidar, nesse instante, que os postulados da confiança e da lealdade não consideram, em linha de princípio, a postura subjetiva das partes, isto é, se agiram com dolo, culpa, erro ou ignorância, sendo suficiente a quebra dos valores da confiança legítima e da lealdade necessária – se evidentemente outro princípio não obtiver maior peso diante da situação concreta.
Em síntese, portanto, a aplicação da teoria da confiança como técnica interpretativa se volta, em substância, não para o sentido literal ou extensivo da norma, nem tampouco se preocupa primordialmente com a vontade da norma (mens legis), mas sobretudo para a confiança (segurança de procedimento) despertada, com relação às normas aplicáveis e aplicadas, no curso da relação jurídica averiguada.
Sob a ótica dos deveres anexos derivados da boa-fé, está evidenciado que a Administração teria afrontado, de maneira direta, ainda no caso sob exame, os deveres de lealdade e de informação, sem que se cogite, por óbvio, má-fé de sua parte, conceito que é ligado, de resto, à idéia de boa-fé subjetiva.
Este último dever, de indiscutível valor nas relações humanas como um todo, estipula que as partes devem trazer para a situação jurídica travada todas as informações que possam interessar ao fiel cumprimento de suas obrigações no tráfego. Parece-nos luzente que a comunicação da redução da remuneração no caso de cessão para outro órgão, se este era o raciocínio jurídico reinante e operante na Administração, era um dever jurídico, decorrente dos princípios da moralidade e da boa-fé objetiva, que se impõe sem sombra de dúvida à Administração.
Igualmente o dever de lealdade, cerne da idéia de boa-fé objetiva, acaba vulnerado em situação que tal, porque, se a Administração nada comunicou sobre a redução e, sobretudo, passou a adotar o critério da não redução, incutindo a confiança legítima do servidor no agir da Administração, não podia ela voltar-se contra a situação por ela consentida – pelo menos com relação aos fatos exauridos, ou seja, os pagamentos efetuados até a ciência do servidor da interpretação dominante. É preciso frisar que a confiança do servidor tornou-se de fato legítima na medida em que o proceder administrativo goza da presunção de legitimidade, sendo certo também que o transcurso de tempo razoável da cessão (dois anos) é fato decisivo para a cristalização da confiança depositada.
Olhando, ainda, a moldura fática levantada sob a ótica da função limitativa da boa-fé objetiva, nota-se que, sob a preponderância desse princípio no caso, a cobrança dos valores supostamente pagos a maior, originados da não redução do percentual remuneratório, tem caráter abusivo por violação do limite imposto pela boa-fé.
Qualquer exercício de direitos, potestades e prerrogativas há que obedecer aos liames ditados pela boa-fé, sob pena de se incorrer em abuso de direito ou de poder. Trata-se de uma novel figura de ilícito, dito ilícito objetivo, cujo traço diferenciador é despreocupação em se investigar a violação formal do texto de lei, sendo relevante a afronta aos valores que conformam a ordem jurídica, notadamente o da boa-fé.
O conceito de abuso de direito é bem definido no Novo Código Civil, em seu artigo 187, cuja aplicação no Direito Administrativo é indene de dúvidas, posto que norteado por princípios de atuação serena nessa seara, tais como o da boa-fé, da probidade e da função social dos institutos jurídicos. Conforme o dispositivo, quem exerce um direito reconhecido pelo ordenamento para além dos limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, ou em desacordo com os fins sociais e econômicos a que se destinam, também estará cometendo ato ilícito.
Ressai, dessa função limitativa, uma figura jurídica de crucial importância para a situação em tela: a do venire contra factum proprium. Trata-se de categoria de ato abusivo em que o agente, ou a Administração, adota uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente.
A regra do venire contra factum proprium acabou arranhada com a iniciativa da cobrança das quantias pagas. Ora, se a Administração não comunicou ao servidor os reflexos que a cessão para outro órgão pudesse ter em sua remuneração, nem adotou desde logo essa redução, a fim de que ele pudesse tomar a decisão de aceitar ou não a cessão, deixando transcorrer período de mais de dois anos para comunicar o erro no pagamento, não pode impor, depois, o desfazimento de toda essa situação, mesmo sob o pretexto de que houve violação a norma interna que previa a redução.
O venire proíbe que a Administração se volte contra uma situação que ela mesma construiu, se se está diante da boa-fé e da confiança legítima do beneficiário do ato, como se constata aqui.
A prescrição do venire contra factum proprium tem eficácia também no Direito Administrativo, mesmo diante de uma situação de suposta ilegalidade, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
Tendo tudo exposto, pode-se concluir que, diante de situações concretas como a narrada, o princípio da legítima confiança pode e deve prevalecer sobre o da legalidade, à luz da técnica da ponderação de valores operantes sobre a disciplina jurídico-normativa do Direito Administrativo.
fonte:http://www.servidorpublico.net/noticias/2008/10/04/o-principio-da-confianca-e-restituicao-de-remuneracao-paga-indevidamente-a-servidor-publico/
De uma banda, parece juridicamente válido recobrar o que foi pago a servidor além do permitido na lei que estipula sua remuneração. De outra, também se pode antever o alcance do princípio da boa-fé objetiva, diante da crença do servidor na legalidade das parcelas remuneratórias que percebe, ante o princípio da presunção de legitimidade dos atos da Administração Pública.
Tendo esses mandamentos, nos moldes acima, um potencial de eficácia em realidades fáticas como a versada, e possuindo ambos envergadura constitucional (art. 37, caput, da Constituição, e outros de que se deduz a boa-fé), a polêmica há que se resolver com base na técnica da ponderação de valores, incorporada, de forma inconteste, no arcabouço hermenêutico do Direito Brasileiro.
Autor de obra referencial sobre o tema no Direito Constitucional contemporâneo, o jurista Daniel Sarmento põe em relevo a situação em que se demanda, validamente, a utilização da técnica comentada:
"A ponderação de interesses só se torna necessária quando, de fato, estiver caracterizada a colisão entre pelo menos dois princípios constitucionais incidentes sobre o caso concreto. Assim, a primeira tarefa que se impõe ao intérprete, diante de uma possível ponderação, é a de proceder à interpretação dos cânones envolvidos, para verificar se eles efetivamente se confrontam na resolução do caso, ou se, ao contrário, é possível harmonizá-los." A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 99Como ilustração, cite-se a decisão que se segue, do e. Supremo Tribunal Federal, em que admite e utiliza o mecanismo interpretativo de que se fala:
Fazendo a ponderação dos valores constitucionais contrapostos (princípio da proporcionalidade), considera a possibilidade de uma lesão grave ao direito à honra e à imagem dos servidores e da Policia Federal, atingidos pela declaração de a extraditanda haver sido vítima de estupro carcerário, divulgado pelos meios de comunicação, do que ao direito à intimidade e à vida privada da extraditanda, visto que o exame de DNA pode ser realizado sem invasão da integridade física da extraditanda ou de seu filho (RCL 2.040-DF, Rel. Min. Néri da Silveira, 21.02.2002).Destarte, é cabível que se recorra à referida técnica de interpretação jurídica, para o escopo de se chegar a uma solução mais justa para uma situação conflituosa como a apresentada, aplicando-se, de efeito, o princípio que possua maior peso ou preponderância.
Como a técnica da ponderação tem sempre em vista um caso concreto, calha levantar um exemplo fático de molde a realçar a possibilidade de opção, por ter maior peso ou preponderância, do princípio da confiança.
Imagine-se caso de servidor de uma das Casas do Congresso Nacional que é requisitado para o exercício de função comissionada na Presidência da República. No curso do processo administrativo, o órgão de pagamento da Casa Congressual nada disse a respeito de uma redução de uma parcela remuneratória que compõe sua remuneração, em função de uma legislação interna da Casa, decorrente de cessão para outro Poder. Deferida a requisição, a própria Administração deixa de efetuar a redução e continua pagando a remuneração sem a referida redução remuneratória. Passados dois anos, é descoberta, pelo órgão de pessoal da Casa Legislativa, a ilegalidade do pagamento, o que leva à cobrança do que foi pago, indevidamente, durante dois anos de exercício da função na Presidência da República.
A nosso aviso, há que prevalecer, na situação narrada, o princípio da confiança e da boa-fé objetiva, pelos motivos que se põem a informar.
É indubitável, hodiernamente, que o princípio da boa-fé ou da confiança restou adotado em nosso ordenamento jurídico-constitucional.
Em que pese não ser referido de forma manifesta na Carga Magna, ele é deduzido do conjunto de valores hauridos do sistema constitucional,
entre eles o da dignidade humana (art. 1º, III), da solidariedade social (art. 3º, I), da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI) e da moralidade administrativa (art. 37, caput).
Cingindo-se, como é curial, a um dos princípios que mais interessa à atividade administrativa, o princípio da moralidade, é mais do que remansoso na doutrina que o princípio da boa-fé objetiva se apresenta como a noção objetiva desse basilar postulado administrativo.
Nessa senda de pensamento, tem-se o ensinamento do jurista José Guilherme Giacomuzzi, constante de sua obra específica acerca do assunto, sobre as duas dimensões do princípio da moralidade, em que já antecipa, o significado da boa-fé objetiva com o de um padrão de conduta transparente e leal:
"Enquanto princípio jurídico, a moralidade também contém um aspecto objetivo (pouco explorado) e outro subjetivo.Também o renomado jurista Celso Antônio Bandeira de Melo aponta, de há muito, o alcance objetivo do postulado da moralidade, ínsito no art. 37, caput, do Diploma Constitucional: "Compreendem-se em seu âmbito, como é evidente, os chamados princípios da lealdade e da boa fé, tão oportunamente encarecidos pelo mestre espanhol Jesús Gonzáles Péres em monografia preciosa" (Curso de Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 109).
No primeiro, que é em verdade o mais fecundo campo de aplicação da moralidade, ela veicula a boa-fé objetiva no campo do direito público-administrativo, exigindo um comportamento positivo da Administração e impondo a ela deveres de conduta transparente e leal. A inação administrativa pode, examinado o caso concreto, gerar ao cidadão direito subjetivo público a prestações do Poder Público ou a indenizações. A proteção à confiança legítima dos administrados é seu principal desdobramento, não havendo, em princípio, óbice para o aproveitamento dos institutos decorrentes da boa-fé objetiva desenvolvida no campo jurídico-privado aos domínios do direito público-administrativo.
No segundo aspecto (subjetivo) impõe um dever de honestidade ao administrador público, podendo-se falar em um dever de probidade, estando o ilícito – civil lato sensu – de improbidade previsto na LIA (lei de improbidade administrativa).." A Moralidade Administrativa e a Boa-fé da Administração Pública. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. pp. 308 e 309
Ainda, Carmem Lúcia Antunes Rocha, ao comentar o princípio da moralidade administrativa, segue a mesma trilha do retrocitado autor: "A virtude que se pretende ver obtida com a prática administrativa moral fundamenta-se no valor da honestidade do comportamento, da boa-fé, da lealdade dos agentes públicos, e todos estes elementos estão na moralidade, como integrantes de sua essência e sem os quais não se há dela cogitar" (Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 193).
Esclarecida a base constitucional da boa-fé objetiva e da confiança, mister que se traga a lume seu significado jurídico e as funções que exercem no ordenamento, apontando, desde logo, sua confluência no quadro fático levantado como exemplo de conflito entre os princípios da legalidade e confiança.
Elucide-se, em primeiro momento, que a noção de boa-fé objetiva não se confunde, rigorosamente, com a idéia da boa-fé subjetiva, instituto mais familiar aos operadores do Direito Administrativo.
Decerto, enquanto esta se refere a uma postura subjetiva do agente de estar agindo conforme o Direito, aquela preconiza um padrão de conduta leal, transparente e cooperativa das partes envolvidas no tráfego jurídico, sem investigar suas reais intenções. Basta, portanto, uma análise objetiva da situação concreta para verificar se houve ou não quebra do valor boa-fé, sendo de natureza objetiva, também, conforme é pacífico, a responsabilidade pela quebra do princípio da boa-fé objetiva (responsabilidade independente de culpa).
Ao preconizar um agir de acordo com a lealdade, dispensada a investigação psicológica (boa-fé subjetiva), o princípio da boa-fé objetiva exerce três funções no ordenamento jurídico: a primeira, dita interpretativa, concerne ao critério hermenêutico dos contratos e normas jurídicas, que se presta a extrair-lhes o significado de maior conformidade com a boa-fé e a confiança depositada na relação jurídica; a segunda, dita função integrativa, prevê deveres anexos ou laterais aos previstos no contrato ou na lei, que se resumem nos deveres de informação, de lealdade e de proteção. A terceira função, chamada função limitativa, se presta a limitar o exercício dos poderes, direitos e prerrogativas das partes do vínculo jurídico.
Por meio de todas essas três funções, e aqui é preciso bem ressaltar, a boa-fé objetiva há que ter efeito no caso narrado, de modo a se atingir a justiça almejada.
O prisma hermenêutico de maior peso, para o deslinde da situação, será o da confiança e o da boa-fé. De fato, para além das discussões jurídicas e das reais dúvidas que se possam levantar, o que se tem é que a interpretação que vigeu, no exemplo acima, durante o período em que o servidor esteve hipoteticamente cedido, foi a de que a redução não era devida. Isso porque, além de a Administração não ter comunicado ao servidor o mecanismo hermenêutico que iria supostamente trilhar, o que deveria ter feito em função do dever de informação decorrente da boa-fé objetiva, a Administração acabou adotando, independentemente das causas e motivos, o critério da não-redução durante todo o interstício.
Embora tal raciocínio não pareça familiar aos não acostumados com o princípio da boa-fé objetiva, é preciso não olvidar, nesse instante, que os postulados da confiança e da lealdade não consideram, em linha de princípio, a postura subjetiva das partes, isto é, se agiram com dolo, culpa, erro ou ignorância, sendo suficiente a quebra dos valores da confiança legítima e da lealdade necessária – se evidentemente outro princípio não obtiver maior peso diante da situação concreta.
Em síntese, portanto, a aplicação da teoria da confiança como técnica interpretativa se volta, em substância, não para o sentido literal ou extensivo da norma, nem tampouco se preocupa primordialmente com a vontade da norma (mens legis), mas sobretudo para a confiança (segurança de procedimento) despertada, com relação às normas aplicáveis e aplicadas, no curso da relação jurídica averiguada.
Sob a ótica dos deveres anexos derivados da boa-fé, está evidenciado que a Administração teria afrontado, de maneira direta, ainda no caso sob exame, os deveres de lealdade e de informação, sem que se cogite, por óbvio, má-fé de sua parte, conceito que é ligado, de resto, à idéia de boa-fé subjetiva.
Este último dever, de indiscutível valor nas relações humanas como um todo, estipula que as partes devem trazer para a situação jurídica travada todas as informações que possam interessar ao fiel cumprimento de suas obrigações no tráfego. Parece-nos luzente que a comunicação da redução da remuneração no caso de cessão para outro órgão, se este era o raciocínio jurídico reinante e operante na Administração, era um dever jurídico, decorrente dos princípios da moralidade e da boa-fé objetiva, que se impõe sem sombra de dúvida à Administração.
Igualmente o dever de lealdade, cerne da idéia de boa-fé objetiva, acaba vulnerado em situação que tal, porque, se a Administração nada comunicou sobre a redução e, sobretudo, passou a adotar o critério da não redução, incutindo a confiança legítima do servidor no agir da Administração, não podia ela voltar-se contra a situação por ela consentida – pelo menos com relação aos fatos exauridos, ou seja, os pagamentos efetuados até a ciência do servidor da interpretação dominante. É preciso frisar que a confiança do servidor tornou-se de fato legítima na medida em que o proceder administrativo goza da presunção de legitimidade, sendo certo também que o transcurso de tempo razoável da cessão (dois anos) é fato decisivo para a cristalização da confiança depositada.
Olhando, ainda, a moldura fática levantada sob a ótica da função limitativa da boa-fé objetiva, nota-se que, sob a preponderância desse princípio no caso, a cobrança dos valores supostamente pagos a maior, originados da não redução do percentual remuneratório, tem caráter abusivo por violação do limite imposto pela boa-fé.
Qualquer exercício de direitos, potestades e prerrogativas há que obedecer aos liames ditados pela boa-fé, sob pena de se incorrer em abuso de direito ou de poder. Trata-se de uma novel figura de ilícito, dito ilícito objetivo, cujo traço diferenciador é despreocupação em se investigar a violação formal do texto de lei, sendo relevante a afronta aos valores que conformam a ordem jurídica, notadamente o da boa-fé.
O conceito de abuso de direito é bem definido no Novo Código Civil, em seu artigo 187, cuja aplicação no Direito Administrativo é indene de dúvidas, posto que norteado por princípios de atuação serena nessa seara, tais como o da boa-fé, da probidade e da função social dos institutos jurídicos. Conforme o dispositivo, quem exerce um direito reconhecido pelo ordenamento para além dos limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, ou em desacordo com os fins sociais e econômicos a que se destinam, também estará cometendo ato ilícito.
Ressai, dessa função limitativa, uma figura jurídica de crucial importância para a situação em tela: a do venire contra factum proprium. Trata-se de categoria de ato abusivo em que o agente, ou a Administração, adota uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente.
A regra do venire contra factum proprium acabou arranhada com a iniciativa da cobrança das quantias pagas. Ora, se a Administração não comunicou ao servidor os reflexos que a cessão para outro órgão pudesse ter em sua remuneração, nem adotou desde logo essa redução, a fim de que ele pudesse tomar a decisão de aceitar ou não a cessão, deixando transcorrer período de mais de dois anos para comunicar o erro no pagamento, não pode impor, depois, o desfazimento de toda essa situação, mesmo sob o pretexto de que houve violação a norma interna que previa a redução.
O venire proíbe que a Administração se volte contra uma situação que ela mesma construiu, se se está diante da boa-fé e da confiança legítima do beneficiário do ato, como se constata aqui.
A prescrição do venire contra factum proprium tem eficácia também no Direito Administrativo, mesmo diante de uma situação de suposta ilegalidade, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
"Título de propriedade outorgado pelo poder público, através de funcionário de alto escalão. Alegação de nulidade pela própria administração objetivando prejudicar o adquirente: inadmissibilidade. Se o suposto equívoco no título de propriedade foi causado pela própria administração, através de funcionário de alto escalão, não há que se alegar o vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço estipulado para fins de aquisição. Aplicação do princípio nemo potest venire contra factum proprium" (STJ, 2ª Turma, RESP 47015/SP, Rel. Min. Ademar Maciel, DJ, 9-12-1997).Diante, portanto, de todo esse quadro de abrangência da boa-fé objetiva e do princípio da confiança, não se pode afirmar, como ocorre em algumas situações, que esse princípio tenha espaço apenas quando se verifica "erro de interpretação da norma aplicável", devendo ser afastado, como se defende, quando se constata "erro operacional". Essa compreensão, a nosso aviso, mais se prende à idéia do princípio da legalidade, posto que o erro de interpretação, em geral, ocorre quando é superado o critério de avaliação do significado da lei, sendo que o erro fático se constata quando a situação não faz incidir a norma indicada ou faz aplicar outra. É preciso perceber que o princípio da legalidade, pelo menos no estágio atual da Ciência do Direito Administrativo, não detêm, a priori, uma primazia absoluta de aplicação, devendo ser ponderado, em cada caso concreto, com outros valores constitucionais igualmente passíveis de incidência.
Loteamento. Municipio. Pretensão de Anulação do Contrato. Boa-Fé. Atos Próprios. - Tendo o Municipio celebrado contrato de Promessa de Compra e Venda de lote localizado em imóvel de sua Propriedade, descabe o pedido de anulação dos atos, se possível a regularização do loteamento que ele mesmo está promovendo. Art. 40 Da Lei 6.766/79. - A Teoria dos Atos Próprios impede que a Administração Publica retorne sobre os próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade de seu procedimento. Recurso não conhecido. (RE 0057205-8/SP, Rel. Ministro Ruy Rosado, 24-11-1998).
"– Administrativo. Concurso público. Princípio da legalidade. Sua harmonização com a estabilidade das relações jurídicas e a boa-fé. Candidata admitida a concurso antes de completar a idade mínima prevista no edital. Recusa de nomeação da candidata que além de aprovada já atingira a idade limite. Ilicitude da recusa. Recurso especial não conhecido. O concurso público, como procedimento, deve observar o princípio da instrumentalidade das formas (art. 244 do CPC). Em sede de concurso público não se deve perder de vista a finalidade para a qual se dirige o procedimento. Na avaliação da nulidade do ato administrativo é necessário temperar a rigidez do princípio da legalidade, para que ele se coloque em harmonia com os princípios da estabilidade das relações jurídicas, da boa-fé e outros valores essenciais à perpetuação do estado de direito. Limite de idade em concurso é requisito para o exercício do emprego. Assim, se o candidato que não satisfazia o requisito no momento da inscrição foi admitido ao concurso e aprovado, não é lícito a Administração recusar-lhe a investidura, se no momento da contratação a idade mínima já se consumara" (Resp N. 6518/RJ – 1. Turma – Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros)
Tendo tudo exposto, pode-se concluir que, diante de situações concretas como a narrada, o princípio da legítima confiança pode e deve prevalecer sobre o da legalidade, à luz da técnica da ponderação de valores operantes sobre a disciplina jurídico-normativa do Direito Administrativo.
fonte:http://www.servidorpublico.net/noticias/2008/10/04/o-principio-da-confianca-e-restituicao-de-remuneracao-paga-indevidamente-a-servidor-publico/
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